A VIDA PASSADA A LIMPO
Não há razão para imaginar que as biografias de Derrida
que vêm sendo publicadas desde sua morte (há pelo menos duas, nos EUA), em
2004, não se prestem aos mesmos mal-entendidos das leituras de sua obra, reféns
de adesões ou de resistências meticulosamente calculadas. O trabalho de Benoît
Peeters, entretanto, publicado recentemente pela Flammarion, merece o voto de
confiança e o empenho do leitor que se disponha a cruzar 700 páginas de texto
fartamente documentado. Trata-se, certamente, do mais sério e mais importante
trabalho de pesquisa biográfica sobre o filósofo realizado até o momento.
Como articular a lógica de um pensamento alimentado pelas
figurações da própria vida com a história de um homem que se dispôs a negociar
as dificuldades da “paixão” no âmbito público? Peeters – que já escreveu
biografias de Paul Valéry e de Hergé – faz uma opção clara, logo na
apresentação: se, por um lado, subestima os potenciais impasses dessa tarefa
(invocando o risco de “mimetismo” derridiano), por outro, assume plenamente as
exigências da “lei do gênero” biográfico: a abrangência do trabalho com as
fontes e o exercício de uma certa isenção.
Não há como negar o enorme volume de trabalho envolvido na
reconstituição criteriosa da trajetória pessoal e intelectual de Derrida, com o
auxílio não apenas dos textos publicados, mas sobretudo de seus arquivos
pessoais (em Irvine/EUA e no IMEC/França), nos quais se inclui uma vasta e
antiga correspondência. O resultado – organizado cronologicamente, por fases,
da vadiagem nos subúrbios de Argel às especulações sobre um prêmio Nobel,
finalmente não concedido, em 2004 –, é grandioso e tem a vantagem de poder ser
lido de maneira agradável, mesmo por quem conhece pouco da obra de Derrida.
Mas se o livro chega a ser cativante, em muitos momentos,
não é apenas pela fluência da escrita. Paralelamente à trajetória de Derrida,
Peeters oferece uma fascinante história da vida intelectual francesa a partir
do pós-guerra, suas configurações, seus conflitos internos e sua expansão
mundial, sob a etiqueta da “french theory”, período em que esta passou a
ser alavancada pelo sistema universitário americano, atribuindo uma nova
configuração às humanidades.
O biógrafo não cedeu à tentação de colocar no centro de
sua narrativa a revelação de segredos (aliás, de polichinelo), como a história
de amor extraconjugal com Sylviane Agacinski, ainda que a estratégia de
acumulação de detalhes da vida pessoal seja incômoda, em alguns pontos.
Preferiu destacar as relações do pensador com o marxismo, com a psicanálise,
com a fenomenologia, com a crítica literária, explicadas a partir da
convivência com Althusser, Foucault, Sollers, Bourdieu, Lacan, Ricoeur, Genet,
Blanchot, Lévinas, Paul de Man, Habermas, entre outros. Menos do que sugerir
que relações pessoais determinam tomadas de partido, a narrativa ajuda a
entender como afinidades (ou divergências) pessoais resultam de posturas
diante do conhecimento e da prática política.
A perspectiva adotada, “interna”, por assim dizer,
acompanha a voz de Derrida (sobretudo a das correspondências) e dos
entrevistados, chegando a aventurar-se numa espécie de discurso indireto livre,
apenas interrompido por aspas e notas tão numerosas que o leitor acaba
desistindo de consultar. Mas a cumplicidade não compromete a capacidade de
esclarecimento do texto. Ao contrário, o biógrafo se coloca frequentemente em
primeiro plano, elucidando o sentido dos fatos, apresentando informações
teóricas e contextuais importantes para o leitor não familiarizado. É seu modo
de lidar com os diversos rascunhos de vida que se apresentam sob a forma de
documentos e de testemunhos, eventualmente conflitantes. Se, ao passar a limpo
essas vidas de Derrida, a narrativa ameniza dificuldades, o que garante sua credibilidade
é o fato de que, embora demonstre simpatia pelo biografado, Peeters não deixa
de dar destaque a interesses, erros de estratégia, eventuais efeitos de
narcisismo.
Ao final, para além da fama do teórico exigente e difícil,
criador de uma formulação conceitual (a “desconstrução”) que marcou a história
do século XX, conhecemos também o Derrida militante pelos direitos humanos,
“engajado”, desde os anos 60, com o ensino e com questões pontuais de política
local e internacional, instigador de “contra-instituições”, odiado ou invejado
pelos contemporâneos, suscetível, mas principalmente generoso, irredutível
sobre certas posições, mas também vítima de bloqueios institucionais que
acabaram por selar sua ausência dos departamentos de filosofia, por exemplo,
bem como da universidade francesa, de modo geral.
Para quem o conheceu (Derrida apenas tardiamente visitou o
Brasil, como outros países de “democracia recente”, “na falta de bons
interlocutores às vezes, mas mais frequentemente por razões políticas”), a
leitura do texto de Peeters confirma diversas qualidades, entre as quais
capacidade de escuta e rigor intelectual absolutamente incomuns. Confirma,
também, indiretamente, sem prejuízo daquilo que continua por ser lido no
pensamento e na prática política de Derrida, que “o segredo é que não há
segredo”, não há explicação final para aquilo que continua a nos inquietar.
[Texto publicado originalmente sob o título “Uma vida entre lutas políticas e intelectuais” no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 12/2/2011, p.2-2]
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