POESIA E SINISTRO
Há quem pense a tradição de
poesia como uma corrida de cavalos no qual a descendência está sempre em
atraso; outros preferem buscar nela modelos para uma austera exigência de valor
criativo, supostamente em desuso. Numa época em que o futuro é sentido como
bloqueio, pode ser compreensível que a poesia seja sempre medida em relação a
dados que já foram lançados.
Parece difícil ler a poesia de Armando Freitas Filho sem se colocar essa
questão. Afinal, o livro Lar, (2009) requisita a tradição e a qualifica
– não sem ironia – como mármore perfeito, contra o qual se debate a imperfeição
ou a dissonância estéril do presente. O livro decepciona a corrida de cavalos e
a comparação qualitativa. Não por se colocar fora delas, mas porque a decepção
é sua matéria, sua formulação, sua arte. A obsessão pelo passado manqué,
pelo verso manqué, o drama da dificuldade de dar forma, é aquilo que
desacredita a forma e ao mesmo tempo a constitui, instruindo o leitor na
experiência de suas regras. Lar, pede para ser lido sob o signo da
desarmonia, da solidão sem lar.
Se o livro é,
explicitamente, um livro de memória, um livro da experiência que se expõe como
autobiográfica, como propõe o prefácio de Vagner Camilo, contido no livro, o
“veio autobiográfico” em si mesmo é uma falsa questão. Embora os poemas, mais
diretamente os da primeira parte, não deixem de organizar um percurso
cronológico, do universo familiar ao escolar, a própria miséria dos “fatos”
sugere que está em jogo não a mera narrativa biográfica, mas a experiência ao
mesmo tempo situada e deslocada de um sujeito. A relação com os pais, com a
religião, com o sexo, mas também a metalinguagem e a negociação com a idéia de
finitude, são ocasiões em que se expõe o ruído da memória e a sordidez da
intimidade. O que interessa nos fatos biográficos não está tanto nos conteúdos
do passado quanto no “gemido da madeira” que detém antigos papéis. Ou, dizendo
de outro modo: se há confissão, aqui, é antes de mais nada uma confissão do
corpo.
A falta de interioridade possível, que sugere a vírgula atrelada à
palavra “lar”, no título, aponta para um tema já conhecido da poética de
Armando: a dramatização da superfície do corpo (de sentidos como o cheiro, o
gosto, o tato, explorados à exaustão), ou melhor, o “esfregar” dos corpos, que
os retira da imanência e os coloca em relação, ou em atrito. É preciso levar
isso em conta, a propósito daquilo que aproxima o autor de Drummond ou Cabral,
mas também da crítica que lhes dirige: ao primeiro, pelo seu simbolismo, sua
suposição de interioridade, ainda que dissonante; ao segundo, pela “limpeza” da
situação poética. Não há oposição ao tipo de solução que os totens modernistas
realizaram, mas à exigência da solução, ela mesma; “matando o pai no
segredo / do corpo”, a poesia reafirma sua singularidade, mas não a relança tal
como foi prevista. O “segredo do corpo” não é aqui exatamente o espaço (alusivo,
irônico, ou pós-moderno) onde se realiza um sacrifício higiênico, mas tem
função quase adverbial, de um por-meio-de-que que contém seu próprio
embaraço, seu dano, seu sinistro.
Uma paráfrase honesta de Lar,
(que as recensões imediatas do livro vêm tendo dificuldade em formular) nos
conduziria a algo como uma poética da decepção, não apenas porque o corpo nunca
está além de seu segredo, mas porque o esfregar dos corpos também não é
rejubilativo. O corpo range, mais do que se arrepia. O corpo nos ensina a ler a
decepção como uma função do verso, que tropeça, que transborda, que se derrama
à mistura com a dramática iminência da prosa; que negocia com o aleatório do
corte, prescrevendo um discurso sobre o verso como interrupção. Interromper é
ampliar o sentido de uma palavra, de uma locução, perdida no fluxo da prosa do
mundo. Se essa ampliação pode parecer a alguns leitores desprovida de razão e
de efeito, exatamente por isso ela não deixa de ser um retrato fidedigno da
decepção histórica que caracteriza sua época.
A arte da desolação, tal
como a pratica Armando, tem coerência e perspectiva. Ela nos ensina como deve
ser lida, mas precisa de tempo para mostrar seus requisitos. A tal ponto que
acaba se envolvendo com um certo didatismo, que não há como separar do ato de
ensinar, e que na poesia do autor fervilha na insistência com relação à
fraqueza da repetição, à compulsão de escrita que não se fecha, à reiteração de
fracasso do “repetente”, do ajuste de contas com seus fantasmas. Aprender a ler
é aprender a lidar com a decepção reiterada, a reescrita, a correção, o
adiamento de si contido na gravação de voz – é o que parece nos dizer a cada
página o livro Lar, (“reescrevo, corrijo, fazendo / pressão com o lápis
rombudo / para marcar minha dissidência”).
Ao longo dos textos, o extravio, a ferrugem, o descompasso, o
inacabamento, o corroído, o empilhado, toda a lógica do dano contida no canhoto
(“sinistro”) que se esfrega contra o gauche drummondiano, são índices de
uma poética que se comenta, que expande sua metalinguagem. O drama se dilata,
assumindo o risco de remeter “sem parar”, compulsivamente, a seu próprio
inacabamento, a seu situado “castigo”. O poema ensina o sinistro de modo tão
abundante que faz dele seu próprio flagelo.
O que parece haver de excessivo na poesia de Armando não deixa de
ser a resposta para aquilo que dela se pede, à poesia de modo geral: uma
coerência, uma atitude, uma função – sempre contrariadas ou decepcionadas pela
voracidade da própria exigência que as solicita. A épica de nosso tempo é
tantas vezes a da decepção, do descompasso entre aquilo que se procura na
poesia e aquilo que ela oferece, mesmo que não saibamos exatamente o quê. A
“culpa” expressa pelo poema não deixa de ter paralelo com esta outra, que é a
de prolongar tal constrangimento, por não sabermos ou não querermos
reconhecê-lo.
O que a poética da decepção
em Lar, acaba por sugerir é uma responsabilidade compartilhada diante do
sinistro: a de exigir o direito da forma e de concedê-lo, por exemplo, à
poesia.
[Texto publicado originalmente sob o título “Uma poética da
decepção” no Jornal de Resenhas, São Paulo, dezembro de 2009, p.18-19.]
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