SOBRE A POESIA QUE VENDE
Há uma ideia já antiga, realista e ao mesmo tempo
estratégica, de que “poesia não vende”. Ainda não está muito claro se isso
seria uma vantagem ou uma desvantagem para a poesia. Mas o fato é que os livros
de poesia costumam ser recusados por livreiros e, consequentemente, olhados com
polida antipatia quando apresentados aos editores. Alega-se desinteresse do
público. Segundo uma discussão curiosa, especula-se se seriam 300 ou 3.000 os
leitores de literatura contemporânea, no Brasil. A estimativa é tão incerta
quanto impraticável, uma vez que leitores de poesia não leem poesia apenas em
livros nem compram necessariamente os livros que leem. De resto, a internet
complicou de uma vez por todas esse tipo de cálculo.
A ideia do desinteresse em relação à poesia refere-se,
portanto, em primeiro plano, não exatamente à leitura, mas à venda de livros
(2% do mercado de livros de ficção, em 2012). Ainda aí há complicações. Em
2013, a tese da marginalidade mercadológica tornou-se algo insólita com o best
seller de Paulo Leminski, Toda poesia, publicado pela Co. das
Letras, livro que chegou aos 100 mil exemplares vendidos em pouco mais de um
ano. Poética, de Ana Cristina Cesar, também não fez feio e seguiu-se a
ela outra compilação, de Wally Salomão, no setor de “clássicos” contemporâneos
ainda não “resgatados” (como disse uma das editoras da casa). A poesia portanto
é resgatável, também comercialmente.
Outros editores, inclusive pequenos, vêm mostrando
um interesse já consolidado pela poesia, publicando-a “discretamente”, não raro
de modo artesanal. A situação, bem diferente do aberto descaso de que sofria o
gênero há algumas décadas, merece atenção do ponto de vista crítico e
editorial.
A Co. das Letras tem sua especificidade. Ao lado
dos poetas ligados ao pop dos anos 1970, a editora vem publicando também
sucessos modernistas já estabelecidos, como Vinícius de Moraes. A compra dos
direitos de publicação de Drummond, em 2012, foi um acontecimento importante na
agenda comercial do livro. O lançamento, em 2017, das Poesias reunidas
de Oswald de Andrade e a previsão de lançamento da poesia completa de Hilda
Hilst parecem indicar uma nova estratégia. Nota-se que a tentativa de atribuir
glamour comercial à poesia, apoiada no aparato da publicidade, tem sido capaz
de mobilizar setores especializados da mídia e a atenção dos festivais.
Com exceções pontuais, a Co. das Letras sempre
publicou poesia esparsamente. Com relação à poesia brasileira, a consolidação
do catálogo é ainda mais recente e a escolha de autores, relativamente
arbitrária. Se a publicação de poesia pode ser vista como uma concessão que se
faz a determinados círculos intelectuais, como um verniz de civilidade dentro
da lógica de mercado, gerando “sucesso de estima”, não se pode menosprezar a
tendência da incorporação ao catálogo de nomes do showbiz, de tudo
aquilo que circula bem nas colunas e nas redes sociais. De Gregório Dudivier e
Arnaldo Antunes a Fernanda Torres, isso é perceptível não apenas no caso da
poesia. Mas a notícia de uma antologia de poesia brasileira contemporânea
organizada por Adriana Calcanhoto não deixa de ser bom exemplo dessa
estratégia, que visa associar ideia de livro e ideia de produto.
Não acredito que se possa contestar, como
formulação de princípio, o trabalho de dar publicidade a um bom livro. Há um
risco real, entretanto, em transformar em critério editorial traços
característicos da lógica do marketing, ou seja, daquilo que procura adequar-se
à previsibilidade do gosto do público (dito “médio”) ou, pior, de um desejo de
compra (esfera da sedução de produto).
Não há receita para saber o que é boa literatura.
Nem as políticas editoriais são tão lineares. Mas há um problema quando o
projeto de livro limita-se à opção entre gerar o produto novo e reciclar o
produto fora de catálogo. Outras variantes precisariam ser consideradas, como
os debates em curso sobre problemas contemporâneos, as questões de crítica e
história literária, a natureza das discussões sobre a poesia, a situação
editorial dos principais livros da poesia brasileira, a relação da edição com o
ensino, a presença da poesia internacional na produção literária, o tipo de
leitor que queremos constituir.
A impressão é que a dimensão pública da poesia é
minimizada pelos editores. Basta ler as orelhas, as entrevistas, considerar
determinadas intervenções na mídia para se perceber uma espécie de afetação
pessimista a esse respeito. Quando se transforma em descaso intelectual,
apartado do ambiente no qual as obras circulam, acaba por justificar o que se
assemelha a um niilismo mercadológico, que exaure determinados espaços para
poder reocupá-los, legitimando seus objetos pela mera exposição no espaço
público.
Mimetizada pelos próprios autores, em outras
circunstâncias, a postura causa consternação. Mas naturalizada como modus
operandi da literatura, suas consequências podem ser ainda mais
desastrosas. Valeria a pena avaliar se isso nos basta como vida literária.
[Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, com o título “Descontruindo
o mito de que poesia não vende”, no dia 5/3/2017. A versão do jornal é
diferente em alguns pontos, a começar pelo título, e não incluía os dois
últimos parágrafos, tal como aqui reproduzidos.]