PREFÁCIO ao livro De volta ao fim (2016)
Suponhamos que quando dizemos o
“fim das vanguardas” não estejamos
nos referindo a um conteúdo de
verdade histórica, algo verificável em
determinado momento da segunda
metade do século XX, mas que estejamos
nomeando uma operação crítica
e discursiva – presente em textos
ensaísticos, literários,
jornalísticos – ela mesma produtora de história. Neste
caso, teríamos que ouvir a hoje
afamada expressão “o fim das vanguardas”
sempre entre aspas,
independentemente do uso do sinal gráfico, como uma
espécie de citação. A hipótese
deste livro é que a análise do enunciado do
fim das vanguardas e das
variantes da ideia de fim (a consumação, a crise,
o sinistro) oferece um ponto de
partida particularmente esclarecedor para
a compreensão daquilo que está em
jogo no “contemporâneo”, ou melhor,
na visão que nossa época vem
construindo sobre si mesma, de modo não
necessariamente homogêneo, não
necessariamente harmonioso.
Meu interesse, portanto, não é o
de submeter a expressão “o fim das
vanguardas” a um teste de
adequação à realidade. Não se trata de reiterar
a visão de história à qual ela se
refere, nem tampouco contradizer seus
pontos de referência, a fim de
promover a volta a uma narrativa mais original
e mais autêntica, da qual
teríamos nos desviado. Pela mesma razão,
não se trata de lamentar o
descalabro e a penúria que teriam se seguido ao
suposto aniquilamento do espírito
crítico, ou seja, ao declínio das diversas
soluções dadas pela poesia a seu
mal-estar, ao longo do século XX, como
expressão artística ou como fato
social. Dessa mesma perspectiva, mas por
outro lado, não me parece haver
interesse crítico em simplesmente reiterar
o estado de eventual satisfação
(aliás, o mais das vezes matizado) por meio
de uma atitude politicamente mais
acolhedora: a aceitação da ideia de
uma pluralidade desreprimida e
pacificada. Tais lugares de fala são igualmente
parte do problema, quando
reforçam a lógica da mera substituição
histórica, como se nossa relação
com o passado e com o presente fosse um
processo destituído de conflitos,
de recalques e de estratégias.
Não me escapa que o espírito
crítico e autocrítico (frequentemente,
“contrapoético”), inquieto,
contestatório, seja uma das contribuições que
a tradição de vanguarda do século
XX trouxe à poesia e à própria postura
do artista diante de seu
presente. Essa tradição estética e crítica ajudou a
constituir uma relação ativa com
o contemporâneo que nos define ainda
hoje; e, sem que precisemos ver
nela um horizonte intransponível, é possível
dizer que acabou por estabelecer
um modo específico de entendimento
dessa modernidade, no qual se
incluem violências e processos de
totalização de que nos
ressentimos ainda hoje. Mais do que isso, convenientemente
para a crítica e para a história
literária, a vanguarda foi, em
muitos momentos, produtora do seu
próprio sentido histórico e crítico. Os
sucessivos manifestos e
declarações de princípio, a reconstrução de genealogias,
seus diagnósticos e projetos,
certa didática da intervenção estética e
política acabaram nos habituando
com uma dinâmica na qual determinadas
declarações da vida literária
tornam-se mais do que meros dados em
um conjunto a ser analisado: elas
tendem a se transformar, graças à sua
força descritiva e prescritiva,
em fatos, isto é, no sentido da vida literária
propriamente dita. Quando esse
amparo lhe é subtraído, compreende-se
o relativo desalento (a sensação
de que “nada está acontecendo”) característico(
a) da crítica e da história
literária, em especial no Brasil, onde a
“tradição da ruptura” (na
conhecida expressão de Octávio Paz) tem um
peso considerável. A poesia
brasileira do século XX é um campo dentro
do qual a vanguarda ou a questão
da vanguarda são mais do que simples
episódios: elas fazem parte de
seu modo de existência.
Constatar o caráter não apenas
incisivo desses gestos, mas também a
sua força legitimadora é,
portanto, um modo de relançar a compreensão
histórica que podemos ter sobre o
contemporâneo. O que está em jogo
não é exatamente um conjunto de
valores e critérios que sucede àqueles da
vanguarda mas é, a meu ver,
especificamente, um outro modo de relação
com esses mesmos valores e
critérios. A vanguarda é (ou continua a ser)
nosso problema exatamente porque
superá-la é aquilo que desejamos.
O mesmo movimento interpretativo
nos permite realizar um outro
tipo de percurso, que caracteriza
a segunda parte deste livro. Trata-se de
reavaliar a relação que a crítica
e a história literária do século XX, não
apenas no Brasil, estabeleceram
com o passado, sobretudo se levarmos
em conta que a construção do
espírito crítico vanguardista baseou-se
frequentemente em uma
simplificação excessiva da poesia da segunda
metade do século XIX. Na medida
em que o “passado” foi identificado,
pelos primeiros movimentos de
ruptura do século XX, com o “passadismo”,
a possibilidade de ler a poesia
anterior como fenômeno relacionado a seu
próprio tempo, como inserção
estratégica em seu presente, questionadora
do seu contemporâneo, foi
praticamente aniquilada. Recontextualizar o
movimento geral que instaurou
determinadas interpretações do passado e
entender o sentido dos projetos
que o reeditam ainda hoje (como é o caso
da discussão francesa sobre a
“pós-poesia”) são tarefas críticas e historiográficas
colocadas pelas demandas
específicas de nosso tempo, as quais
deveriam abrir espaço para outras
possibilidades de leitura da tradição.
Não deixa de ser significativo
que a releitura historicamente mais atenta
dos autores do período anterior
às vanguardas (dentre os quais Mallarmé
permanece como caso
paradigmático) apenas tenha sido possível, apenas
tenha parecido necessária,
recentemente, a partir do momento em que os
critérios de vanguarda passaram a
ser questionados.
A essa avaliação geral é preciso
associar tópicos particulares de entendimento
da poesia moderna, que ganharam
notoriedade graças a determinadas
obras de teoria e história literária,
tendo transformado a noção
de “esteticismo”, por exemplo, em
apoio básico para diferentes projetos de
compreensão da poesia moderna. A
tradição de leitura de Hugo Friedrich
me parece bastante reveladora,
nesse sentido. Apesar de recusada por
diferentes autores, já há mais de
meio século, a perspectiva de Friedrich
sobre alguns poetas modernos,
especialmente franceses, continua sendo
uma referência decisiva para as
reelaborações contemporâneas. O que a
crítica vem contestando no
romanista alemão não é exatamente suas teses
sobre a tradição poética, mas as
escolhas que faz, os autores que toma como
referências básicas da poesia
moderna. Sintomaticamente, suas propostas
continuam sendo usadas pelos mais
ferrenhos detratores, quer seja como
contraponto seguro da tentativa
de resgatar o tônus de realidade ou de realismo
da poesia (o que permitiria
atribuir autoridade histórica a outro tipo
de cânone moderno), quer seja
como parte estratégica de uma crítica à
ambição moderna da “autonomia”
poética, a fim de dar destaque a visões
não totalizantes (baseadas numa
determinação em bloco do moderno
como espaço monológico, a ser
superado pela injunção do hibridismo).
Parece-me claro que, do ponto de
vista do discurso crítico e historiográfico,
a dependência à interpretação de
Friedrich é um dos aspectos mais reveladores
do estado contemporâneo da
discussão sobre poesia.
Se elaborar a maneira pela qual
parecemos suceder à época das vanguardas
é uma tarefa de nosso tempo, ela
requer também o cuidado de não
se promover uma oposição pura e
simples às narrativas de vanguarda, a
fim de resgatar, por exemplo, o
elemento mais original ou mais autêntico.
Não há narrativa mestra, da qual
a vanguarda seria um desvio. A negação
da perspectiva de vanguarda, que
recorre ao universo das poéticas ditas
“neoclássicas” ou
antivanguardistas, não advém apenas de um espírito de
reforma baseado
na denegação, na oposição e na re-hierarquização dos
diferentes matizes da
modernidade; quando destituída do tratamento crítico
exigido pelas dissonâncias de seu
próprio descentramento, torna-se
rapidamente uma avaliação
inconsistente, em especial em relação ao modo
de reagir ao contemporâneo. Por
essa razão, embora tenhamos atualmente
razões de sobra para desconfiar
de termos como “novo”, “invenção”, “militância”,
“subversão”, “revolução” (que
supõem totalidades e que, na condição
de palavras de ordem, costumam
objetivar a produção de anacronismos),
por outro lado, me parece ainda
mais problemático o gesto que não
integra nesse movimento o impacto
de sua própria extemporaneidade.
Por razões semelhantes, a leitura
que proponho do discurso sobre o
fim das vanguardas não se destina
a criar instrumentos para desvanguardizar
a história da poesia. Não há propriamente
“retorno” à modernidade,
uma vez que a ideia de
modernidade, também ela, é uma construção com
valor histórico. Se a história é
caracteristicamente constituída de contradições,
violências e exclusões, tenho
dúvidas de que a melhor solução seja
a de operar apagamentos, perdendo
a clareza sobre aquilo que teve lugar.
Como ficará claro nos ensaios
deste livro, a melhor resposta que
podemos dar a essas questões é
contextualizar a formulação do “fim das
vanguardas”, dando-lhe o estatuto
de acontecimento estético-crítico, ou
seja, analisando seu modo
particular de transformar-se em presente.
Indagar-se a respeito do contexto,
nesse caso, não é nada mais do que uma
tentativa de entender os
fenômenos dentro de um espaço que havia sido
apagado ou esvaziado pelo gesto
de adesão; é enriquecer o sentido desses
fenômenos por meio do
reconhecimento e do embate com seus limites.
Esse movimento, que não pode
pressupor uma história acabada e linear,
mas aberta a reinscrições e
cruzamentos discursivos, solicita não apenas a
problematização das narrativas
instituídas, mas também a consciência de
que a descrição de um novo
contexto, qualquer que seja, nunca é saturável:
ao delimitar um espaço de
análise, estamos novamente aumentando sua
complexidade, fazendo-o
transbordar, reabrindo-o a outras perspectivas,
deslocando-o necessariamente.
A questão não se resolve,
portanto, com o relance da visão historicista,
disposta a corrigir seus passos
pregressos, abonando ou contradizendo
suas teses fundadoras. Ela
envolve antes de tudo o desafio de trabalhar com
os dilemas que essa reavaliação
nos impõe, os conflitos e o inacabamento
de nossa maneira de entender a
poesia. Quando se coloca em primeiro
plano movimentos de denegação, fantasmas
ou reinscrições voluntariosas,
o que acaba por ganhar o primeiro
plano é a própria condição de nossa
fala. Se não somos exatamente
pós-vanguardistas ou pós-utópicos, não é
porque não temos singularidades e
diferenças em relação à vanguarda e à
afirmação utópica, outras formas
de relação com a história: não somos exatamente
pós-vanguardistas porque os
impasses que reconhecemos como
constitutivos desse lugar
histórico e discursivo nos expropriam do sentido
linear e totalizante de nosso
presente. Ou seja, um dos problemas a resolver
é justamente a (im)possibilidade
de sermos contemporâneos de nós mesmos.
Creio que reconhecer esse
movimento de expropriação é uma das
tarefas relacionadas ao desafio
de responder ao contemporâneo.
Apesar da visão circunscrita que
essa tradição poética e crítica tem
a respeito do papel da poesia e
da arte, devo dizer que não vejo interesse
em simplesmente abandonar a
inquietude característica do pensamento
de vanguarda. A disposição
questionadora e investigadora em relação ao
presente é, de fato, um de seus
predicados mais salientes. E talvez continue
sendo o ponto com o qual nos
debatamos, quer seja no momento em que
lamentamos o fim de uma época de
“heroísmo” do poeta e da poesia, quer
seja no momento em que aceitamos muito
rapidamente a pulverização
da ideia de poesia em situações
culturais e estéticas por demais inespecíficas.
O que está aí em jogo é o
estatuto da poesia (o que ainda nos ocorre
chamar por esse nome) e da
poética (como tradição e disciplina de pensamento)
entendidas como lugares possíveis
de relação com o presente.
Se, por um lado, é preciso
desarmar o discurso da crise como instrumento
político de desmobilização ou de
desmonte da tradição poética e
literária (o que creio ser o caso
mais urgente no Brasil), por outro lado é
preciso também reconsiderar a
noção de crise como parte de uma atitude
crítica que tem também uma
dimensão propositiva, imaginativa de certo
modo, destinada ao espaço comum
da interlocução. É na perspectiva dessa
dupla tarefa que acrescento aos
ensaios mais longos deste livro, resultados
de pesquisa universitária (em
especial, desde o projeto “Imagens do fim”,
desenvolvido com bolsa PQ/CNPq, a
partir de 2011), alguns textos ditos “de
intervenção”, escritos mais
breves, originalmente destinados a revistas e
jornais. Creio que, da mesma
maneira que não faltam a estes últimos elementos
argumentativos, também não faltam
aos primeiros a explicitação
dos problemas mais amplos e mais
urgentes com os quais dialogam.
À discussão sobre o fim das
vanguardas – e sobre aspectos que, em
autores bem diferentes, remetem à
questão do contemporâneo pela via da
superação ou da denegação da
tradição de vanguarda – este livro acrescenta
alguns textos que abordam
diretamente o valor crítico da própria
ideia do “fim”, do “naufrágio”,
do “sinistro”, da consumação (inclusive ecológica)
de nossa capacidade de “mundo”.
Dessa perspectiva não simplesmente
mais genérica, e sim mais tensa,
me parece importante suspender
momentaneamente o anúncio do fim
das vanguardas – tantas vezes identificado
com o esgotamento da própria
poesia – de forma a tornar mais
sensíveis as forças e as tensões
que vêm modulando nossa reflexão sobre
o assunto. Arrisco-me a propor,
em um dos textos, que o anúncio do fim
das vanguardas não deixa de
constituir-se como um manifesto, bem ao
gosto daquilo que o século XX nos
habitou a considerar como modo incisivo
de irrupção do poeta na história.
Mas manifestar, em especial numa
época que recusa a legitimidade
do gênero “manifesto”, não pode mais ser
entendido como ato de fixar
determinados princípios, coerentes consigo
mesmos e com sua recepção;
manifestar nada mais é do que explicitar o
desejo de dar
sentido, ou seja, um modo de se debater com a questão do
sentido. Aventurar-se nesse
impasse produtivo é um modo de responder
ao contemporâneo.
Um caso exemplar, cheio de
complicações subliminares, vem da
pluma de um velho vanguardista,
Haroldo de Campos, no momento em
que este procura justamente dar
nome a um novo estado de coisas. Não
me parece ser a situação mais
característica, mas decerto ela é bastante
reveladora a respeito do fato de
que a passagem para fora das vanguardas
não é, de modo algum, uma
passagem para além da crise. Pelo contrário,
é um passo na direção de um novo
lugar de expropriação e de conflito,
no qual valores e critérios de
vanguarda não deixam de marcar presença,
justamente pela falta que parecem
fazer ou, ainda, pelo fato de serem reciclados
em vista de outros interesses,
outros tipos de demanda histórica.
Continuando a reflexão que propus
em Poesia e crise (Ed. Unicamp,
2010), a ideia deste livro é
mostrar como o discurso sobre o fim da vanguarda
(mas também sobre o fim da
poesia, o fim da arte e, eventualmente,
o fim do mundo) constitui-se como
um deslocamento, isto é, como uma
metamorfose do espírito crítico
associado à tradição poética moderna.
Se não há um “após” às
vanguardas, à arte, ao mundo, é porque não há
“fim” propriamente dito,
independentemente da linguagem na qual esse
fim é enunciado. Não há um após
o fim, um após a finitude, uma “época”
de posteridade ou uma
“consciência” de posteridade, a partir dos quais
poderíamos simplesmente constatar
o fim, nomeá-lo, historiá-lo, ativá-lo
a nosso favor. Estamos
incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas
com o fim, em conflito sobre que
nome dar àquilo que teria acabado, sobre
o que significa de fato chegar
ao fim.
Em outras palavras, estamos o
tempo todo reinventando nosso lugar,
um lugar no qual a visão da
catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser
na medida em que nos permite
imaginar outros tipos de começo.
[Prefácio ao
livro De volta ao fim: o "fim das vanguardas" como questão da
poesia contemporânea.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2016]