A POESIA NO CALOR DA HORA:
A DIALÉTICA DO COMPARTILHAMENTO DE CÉLIA PEDROSA
A DIALÉTICA DO COMPARTILHAMENTO DE CÉLIA PEDROSA
No primeiro ensaio de seu
mais recente livro, Célia Pedrosa discorda secamente de Vagner Camilo, que
associa determinado título de Drummond a uma manobra do poeta para colocar-se
em oposição a seus contemporâneos. O desacordo com o crítico paulista não deixa
de fazer parte do debate sobre a herança de Antonio Candido, mas serve à autora
sobretudo para afirmar uma visão do poeta como homem do seu tempo, preocupado em
resgatar a profundidade temporal e poética da linguagem. A poesia, responsável
pelo destino de um imaginário compartilhado, deveria ser entendida de modo
“positivo”.
Creio que a proposta poderia
ser estendida ao trabalho crítico de Célia Pedrosa, que vem buscando, há mais
de uma década, identificar a perspectiva que a poesia tem sobre o mundo, seus
recortes significativos, as estratégias que mobiliza na percepção dos
movimentos tectônicos daquilo que chamamos contemporâneo.
Para a autora, a poesia se coloca
em “relação de diálogo e simultânea resistência” com o contemporâneo, sem
arrogar-se o direito do juízo sentencioso nem, tampouco, contentar-se com a
postura de réu ou de cavalo retardatário no páreo da modernidade. Menos
interessada pelo julgamento sociológico ou estatístico do “impacto” cultural da
poesia, a crítica prefere descrever o modo como esta se dispõe na perspectiva
da produção do “comum”, do “sentido do ser comum e estar em comum”.
De Baudelaire a poetas
brasileiros nascidos na década de 1970, Ensaios sobre poesia e
contemporaneidade requisita um quadro histórico amplo, enraizando seus
interesses mais decisivamente na produção das últimas décadas. Ao reler os
pressupostos do “cânone” modernista brasileiro (Drummond, Mario de Andrade),
Pedrosa coloca em xeque oposições e inconsistências que não passariam de
subprodutos da leitura rotineira desses autores.
A situação curiosa, explorada
por um dos ensaios, é eloquente sobre o deslocamento da discussão: durante as
discussões de um encontro de escritores, o politizado Mario de Andrade
permanece calado na plateia, enquanto escreve os versos do longo poema “A
meditação sobre o Tietê”. A força contraditória do refluxo é que carrega o
sentido poético da história. Mas reler Drummond e Mario de Andrade permite,
para Pedrosa, mais decisivamente, identificar o sentido das continuidades, dos
desdobramentos e das heranças que constituem a “paisagem” contemporânea, tanto
brasileira quanto portuguesa.
As profanações da viagem, da
memória, do olhar, da identidade, uma certa tendência da poesia em caminhar
para dentro da perda compõem a matéria do livro: elas estão na “antiviagem”
mariodeandradiana, que se desdobra até Ítalo Moriconi; estão nos atritos de
Leminski com a ideia de vanguarda; na “desnaturalização da visualidade
dominante na vida cultural contemporânea”, perceptível em Eucanaã Ferraz, Paulo
Henriques Britto e Fabio Weintraub; na subversão do olhar em prol da linguagem
e da visceralidade, em Armando Freitas Filho; na perturbação da paisagem, na poesia
deste resenhista; na recusa irônica da “separação sacralizante”, em Adília
Lopes, ou ainda em Daniel Jonas e Marcello Sorrentino. As desnaturalizações
empreendidas pelo poético perturbam e colocam em crise a autocomplascência, a
apatia e o cinismo “pós-modernos”: eis como a poesia ajuda a produzir
“contemporaneidade”.
Não há dúvidas de que Célia
Pedrosa é uma leitora informada e atenta, que possui a habilidade pouco comum
de organizar em contextos temáticos e críticos pertinentes a leitura de obras
recebidas no calor da hora. O exercício é, não apenas difícil, mas inusual,
tendo em vista a polarização habitual entre as metodologias programáticas,
“descritivas”, e a compulsão da militância. Se Adília Lopes (cujo destaque,
dentro do livro, só é comparával a Drummond) reivindica uma irônica “caridade”,
na chave do “satanismo ético” de Baudelaire, talvez devêssemos também enxergar
uma caridade crítica em Célia Pedrosa, que consistiria na disposição em “fazer
a ponte”, em construir relações, em produzir “compartilhamento”. Isso se
manifesta, não apenas na leitura de poesia contemporânea como lugar legítimo do
desdobramento de um passado algo mitificado, mas também na tentativa de fazer
ombrear, ainda que a propósito de aspectos muito específicos, projetos intelectuais
dificilmente harmonizáveis como os de Antonio Candido e Silviano Santiago, Raul
Antelo e Roberto Schwarz, Paul de Man e Alfonso Berardinelli.
A tentativa de superar
confrontos se manifesta na busca de repensar os laços com a tradição, bem como
os laços entre a poesia brasileira e portuguesa. O lamento pela breve duração
da “prática bifronte” da revista Inimigo Rumor (publicada
simultaneamente no Brasil e em Portugal) é significativo desse desejo de
abandonar oposições polarizantes e instaurar um espaço dialógico. O risco que
ronda o procedimento, como não podia deixar de ser, é exatamente o de amenizar
os embates, os atritos, as denegações, aquilo que permanece recalcado sob os
anseios da comunhão na diversidade – anseios que não deixam de fazer parte, de
modo muito imediato, do sentido do nosso contemporâneo.
[Resenha feita para o jornal O Globo do livro Ensaios sobre poesia e contemporaneidade, de Célia Pedrosa (Rio de Janeiro, Editora da UFF, 2011).]