terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A VIDA PASSADA A LIMPO

  
Não há razão para imaginar que as biografias de Derrida que vêm sendo publicadas desde sua morte (há pelo menos duas, nos EUA), em 2004, não se prestem aos mesmos mal-entendidos das leituras de sua obra, reféns de adesões ou de resistências meticulosamente calculadas. O trabalho de Benoît Peeters, entretanto, publicado recentemente pela Flammarion, merece o voto de confiança e o empenho do leitor que se disponha a cruzar 700 páginas de texto fartamente documentado. Trata-se, certamente, do mais sério e mais importante trabalho de pesquisa biográfica sobre o filósofo realizado até o momento.

Como articular a lógica de um pensamento alimentado pelas figurações da própria vida com a história de um homem que se dispôs a negociar as dificuldades da “paixão” no âmbito público? Peeters – que já escreveu biografias de Paul Valéry e de Hergé – faz uma opção clara, logo na apresentação: se, por um lado, subestima os potenciais impasses dessa tarefa (invocando o risco de “mimetismo” derridiano), por outro, assume plenamente as exigências da “lei do gênero” biográfico: a abrangência do trabalho com as fontes e o exercício de uma certa isenção.

Não há como negar o enorme volume de trabalho envolvido na reconstituição criteriosa da trajetória pessoal e intelectual de Derrida, com o auxílio não apenas dos textos publicados, mas sobretudo de seus arquivos pessoais (em Irvine/EUA e no IMEC/França), nos quais se inclui uma vasta e antiga correspondência. O resultado – organizado cronologicamente, por fases, da vadiagem nos subúrbios de Argel às especulações sobre um prêmio Nobel, finalmente não concedido, em 2004 –, é grandioso e tem a vantagem de poder ser lido de maneira agradável, mesmo por quem conhece pouco da obra de Derrida.

Mas se o livro chega a ser cativante, em muitos momentos, não é apenas pela fluência da escrita. Paralelamente à trajetória de Derrida, Peeters oferece uma fascinante história da vida intelectual francesa a partir do pós-guerra, suas configurações, seus conflitos internos e sua expansão mundial, sob a etiqueta da “french theory”, período em que esta passou a ser alavancada pelo sistema universitário americano, atribuindo uma nova configuração às humanidades.

O biógrafo não cedeu à tentação de colocar no centro de sua narrativa a revelação de segredos (aliás, de polichinelo), como a história de amor extraconjugal com Sylviane Agacinski, ainda que a estratégia de acumulação de detalhes da vida pessoal seja incômoda, em alguns pontos. Preferiu destacar as relações do pensador com o marxismo, com a psicanálise, com a fenomenologia, com a crítica literária, explicadas a partir da convivência com Althusser, Foucault, Sollers, Bourdieu, Lacan, Ricoeur, Genet, Blanchot, Lévinas, Paul de Man, Habermas, entre outros. Menos do que sugerir que relações pessoais determinam tomadas de partido, a narrativa ajuda a entender como afinidades (ou divergências) pessoais resultam de posturas diante do conhecimento e da prática política.

A perspectiva adotada, “interna”, por assim dizer, acompanha a voz de Derrida (sobretudo a das correspondências) e dos entrevistados, chegando a aventurar-se numa espécie de discurso indireto livre, apenas interrompido por aspas e notas tão numerosas que o leitor acaba desistindo de consultar. Mas a cumplicidade não compromete a capacidade de esclarecimento do texto. Ao contrário, o biógrafo se coloca frequentemente em primeiro plano, elucidando o sentido dos fatos, apresentando informações teóricas e contextuais importantes para o leitor não familiarizado. É seu modo de lidar com os diversos rascunhos de vida que se apresentam sob a forma de documentos e de testemunhos, eventualmente conflitantes. Se, ao passar a limpo essas vidas de Derrida, a narrativa ameniza dificuldades, o que garante sua credibilidade é o fato de que, embora demonstre simpatia pelo biografado, Peeters não deixa de dar destaque a interesses, erros de estratégia, eventuais efeitos de narcisismo.

Ao final, para além da fama do teórico exigente e difícil, criador de uma formulação conceitual (a “desconstrução”) que marcou a história do século XX, conhecemos também o Derrida militante pelos direitos humanos, “engajado”, desde os anos 60, com o ensino e com questões pontuais de política local e internacional, instigador de “contra-instituições”, odiado ou invejado pelos contemporâneos, suscetível, mas principalmente generoso, irredutível sobre certas posições, mas também vítima de bloqueios institucionais que acabaram por selar sua ausência dos departamentos de filosofia, por exemplo, bem como da universidade francesa, de modo geral.


Para quem o conheceu (Derrida apenas tardiamente visitou o Brasil, como outros países de “democracia recente”, “na falta de bons interlocutores às vezes, mas mais frequentemente por razões políticas”), a leitura do texto de Peeters confirma diversas qualidades, entre as quais capacidade de escuta e rigor intelectual absolutamente incomuns. Confirma, também, indiretamente, sem prejuízo daquilo que continua por ser lido no pensamento e na prática política de Derrida, que “o segredo é que não há segredo”, não há explicação final para aquilo que continua a nos inquietar.


[Texto publicado originalmente sob o título “Uma vida entre lutas políticas e intelectuais” no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 12/2/2011, p.2-2]

sábado, 22 de fevereiro de 2014

POESIA E SINISTRO


Há quem pense a tradição de poesia como uma corrida de cavalos no qual a descendência está sempre em atraso; outros preferem buscar nela modelos para uma austera exigência de valor criativo, supostamente em desuso. Numa época em que o futuro é sentido como bloqueio, pode ser compreensível que a poesia seja sempre medida em relação a dados que já foram lançados.

Parece difícil ler a poesia de Armando Freitas Filho sem se colocar essa questão. Afinal, o livro Lar, (2009) requisita a tradição e a qualifica – não sem ironia – como mármore perfeito, contra o qual se debate a imperfeição ou a dissonância estéril do presente. O livro decepciona a corrida de cavalos e a comparação qualitativa. Não por se colocar fora delas, mas porque a decepção é sua matéria, sua formulação, sua arte. A obsessão pelo passado manqué, pelo verso manqué, o drama da dificuldade de dar forma, é aquilo que desacredita a forma e ao mesmo tempo a constitui, instruindo o leitor na experiência de suas regras. Lar, pede para ser lido sob o signo da desarmonia, da solidão sem lar.

Se o livro é, explicitamente, um livro de memória, um livro da experiência que se expõe como autobiográfica, como propõe o prefácio de Vagner Camilo, contido no livro, o “veio autobiográfico” em si mesmo é uma falsa questão. Embora os poemas, mais diretamente os da primeira parte, não deixem de organizar um percurso cronológico, do universo familiar ao escolar, a própria miséria dos “fatos” sugere que está em jogo não a mera narrativa biográfica, mas a experiência ao mesmo tempo situada e deslocada de um sujeito. A relação com os pais, com a religião, com o sexo, mas também a metalinguagem e a negociação com a idéia de finitude, são ocasiões em que se expõe o ruído da memória e a sordidez da intimidade. O que interessa nos fatos biográficos não está tanto nos conteúdos do passado quanto no “gemido da madeira” que detém antigos papéis. Ou, dizendo de outro modo: se há confissão, aqui, é antes de mais nada uma confissão do corpo.

A falta de interioridade possível, que sugere a vírgula atrelada à palavra “lar”, no título, aponta para um tema já conhecido da poética de Armando: a dramatização da superfície do corpo (de sentidos como o cheiro, o gosto, o tato, explorados à exaustão), ou melhor, o “esfregar” dos corpos, que os retira da imanência e os coloca em relação, ou em atrito. É preciso levar isso em conta, a propósito daquilo que aproxima o autor de Drummond ou Cabral, mas também da crítica que lhes dirige: ao primeiro, pelo seu simbolismo, sua suposição de interioridade, ainda que dissonante; ao segundo, pela “limpeza” da situação poética. Não há oposição ao tipo de solução que os totens modernistas realizaram, mas à exigência da solução, ela mesma; “matando o pai no segredo / do corpo”, a poesia reafirma sua singularidade, mas não a relança tal como foi prevista. O “segredo do corpo” não é aqui exatamente o espaço (alusivo, irônico, ou pós-moderno) onde se realiza um sacrifício higiênico, mas tem função quase adverbial, de um por-meio-de-que que contém seu próprio embaraço, seu dano, seu sinistro.

Uma paráfrase honesta de Lar, (que as recensões imediatas do livro vêm tendo dificuldade em formular) nos conduziria a algo como uma poética da decepção, não apenas porque o corpo nunca está além de seu segredo, mas porque o esfregar dos corpos também não é rejubilativo. O corpo range, mais do que se arrepia. O corpo nos ensina a ler a decepção como uma função do verso, que tropeça, que transborda, que se derrama à mistura com a dramática iminência da prosa; que negocia com o aleatório do corte, prescrevendo um discurso sobre o verso como interrupção. Interromper é ampliar o sentido de uma palavra, de uma locução, perdida no fluxo da prosa do mundo. Se essa ampliação pode parecer a alguns leitores desprovida de razão e de efeito, exatamente por isso ela não deixa de ser um retrato fidedigno da decepção histórica que caracteriza sua época.

A arte da desolação, tal como a pratica Armando, tem coerência e perspectiva. Ela nos ensina como deve ser lida, mas precisa de tempo para mostrar seus requisitos. A tal ponto que acaba se envolvendo com um certo didatismo, que não há como separar do ato de ensinar, e que na poesia do autor fervilha na insistência com relação à fraqueza da repetição, à compulsão de escrita que não se fecha, à reiteração de fracasso do “repetente”, do ajuste de contas com seus fantasmas. Aprender a ler é aprender a lidar com a decepção reiterada, a reescrita, a correção, o adiamento de si contido na gravação de voz – é o que parece nos dizer a cada página o livro Lar, (“reescrevo, corrijo, fazendo / pressão com o lápis rombudo / para marcar minha dissidência”).

Ao longo dos textos, o extravio, a ferrugem, o descompasso, o inacabamento, o corroído, o empilhado, toda a lógica do dano contida no canhoto (“sinistro”) que se esfrega contra o gauche drummondiano, são índices de uma poética que se comenta, que expande sua metalinguagem. O drama se dilata, assumindo o risco de remeter “sem parar”, compulsivamente, a seu próprio inacabamento, a seu situado “castigo”. O poema ensina o sinistro de modo tão abundante que faz dele seu próprio flagelo.

O que parece haver de excessivo na poesia de Armando não deixa de ser a resposta para aquilo que dela se pede, à poesia de modo geral: uma coerência, uma atitude, uma função – sempre contrariadas ou decepcionadas pela voracidade da própria exigência que as solicita. A épica de nosso tempo é tantas vezes a da decepção, do descompasso entre aquilo que se procura na poesia e aquilo que ela oferece, mesmo que não saibamos exatamente o quê. A “culpa” expressa pelo poema não deixa de ter paralelo com esta outra, que é a de prolongar tal constrangimento, por não sabermos ou não querermos reconhecê-lo.

O que a poética da decepção em Lar, acaba por sugerir é uma responsabilidade compartilhada diante do sinistro: a de exigir o direito da forma e de concedê-lo, por exemplo, à poesia.



[Texto publicado originalmente sob o título “Uma poética da decepção” no Jornal de Resenhas, São Paulo, dezembro de 2009, p.18-19.]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Iconografia


Iconografia



Entrevista com Marcos Siscar por Aníbal Cristobo


MARCOS SISCAR: “MULTIPLICAR LAS ENCRUCIJADAS”


Conversamos con Marcos Siscar (Borborema, Brasil, 1964) sobre “La mitad del arte”, libro que reúne su producción poética hasta el 2002, y que aparecerá próximamente en Kriller71 Ediciones.

KR — Marcos, lanzaste tu primer libro (não se diz) con 35 años en 1999 y ya con algunas de las señas formales que quizás identifiquen a tu poesía. ¿Cómo llegaste a eso? ¿Tuviste, como muchos otros poetas, una fase adolescente más “expresionista” o tu escritura fue dándose como una maduración de lecturas que ya nació con ciertas preocupaciones formales?
marcos siscar 4MS — Es verdad, en 1999 yo ya era un “viejo”, desde el punto de vista de la precocidad que normalmente se asocia a la poesía. Esperé bastante para publicar mi primer libro, lo que sólo sucedió cuando percibí que tenía algo consistente para mostrar y cuando me sentí estimulado a hacerlo, al regresar a Brasil después de algunos años en el exterior. Existe una fase “subterránea” de mi poesía, que viene de la adolescencia, y que generalmente considero como un largo período de experiencias y de la cual, de vez en cuando, clandestinamente, traigo un fragmento u otro, copiado, reescrito, releído o “traducido”. Tengo la impresión de que todo lo que escribimos siempre es, de alguna forma, una reescritura — hacer aparecer aquello que estaba hundido.
KR — Una de las características de La mitad del arte, que reúne tus cuatro primeros libros, es que, por causa de la casi total falta de puntuación (apenas algunos paréntesis y signos de interrogación quiebran ese continuo) y del uso muy frecuente del encabalgamiento, acaban produciéndose algunas ambigüedades durante la lectura. Esto me parece curioso porque, al mismo tiempo, tu formación —y eso aparece en el libro— está relacionada con la filosofía y el pensamiento en general, y en los poemas surgen frases fuertemente asertivas que no parecerían, en principio, combinar muy bien con la ambigüedad. ¿O sí? ¿Cómo ves esta cuestión?
MS – Leer y pensar forman parte de mi actividad profesional, que es la de profesor universitario. Claro que, a lo largo del tiempo, lo que leo y pienso comienza a formar parte de lo que soy. Pero eso no pasa directamente para los poemas, en forma de conceptos, de métodos, de tics. Hojeo el libro y veo frases afirmativas, “fuertemente asertivas”, como dices. Pero no son “enseñanzas”: son espantos, memorias de cosas oídas, frases que nombran su propia dificultad, pequeñas obsesiones, cuando no pura ironía con el “pensamiento”. Es uno de los “materiales” que uso. El otro es la experiencia más banal y “rústica”, la más desprovista de poeticidad, o de profundidad. Poner en contacto los dos niveles, hacer ese cambio de escala, es lo que me interesa. Y para eso la despuntuación y el encabalgamiento me son muy útiles: además de crear una “respiración” específica, estos elementos aceleran ese paso del que hablaba. No por el simple gusto del contraste, sino porque crean un efecto de descontextualización. Viendo las cosas desde otro ángulo, a partir de dimensiones cambiadas (viendo lo grande en detalle o lo pequeño en conjunto, por ejemplo), estoy probando un punto de vista, en el cual un champú de coco puede tener que ver con el “rigor del pensamiento”.poemas-1
KR — ¿Qué más podrías decir sobre La mitad del arte? ¿Qué le dirías que puede encontrar en tu libro a un hipotético lector español?
MS – Mirando retrospectivamente, creo que el desafío de ese libro, que reúne mi poesía escrita hasta el 2002, fue el intento de superar la falsa oposición entre el experimentalismo (que tiene un peso significativo en Brasil, entre los años 1950 y 1970) y aquello que genéricamente llamaríamos “lirismo”, una poesía que se interesa por el “yo”. Intento no encarar los efectos del lenguaje como resultantes de una construcción poética apolínea: al contrario, la idea es multiplicar las encrucijadas, desarmar la pompa, la idea de control, la institucionalización del “buen tono” experimental. En el libro hay otras tradiciones de poesía cruzándose, tradiciones incluso europeas, lo que me permitió liberarme del peso excesivo que se daba a la cuestión de la vanguardia en Brasil en el momento de mi formación como lector. Por otro lado, tampoco me interesa la mera proyección de un sujeto biográfico, o de un sujeto crítico, aunque me inspire bastante pensar en qué condiciones el discurso de la “intimidad” de la poesía podría, hoy en día, asumir su tenor libidinal en un mundo en que la exposición de la intimidad, “en vivo y en directo” (como se decía antes) parece dispensar las sombras y los meandros de la subjetividad. Está claro que todo eso no es nada fácil. Y que nada de eso tiene sentido sin la complicidad o la resistencia de un lector. Es esa experiencia la que desearía que un lector español pudiera encontrar allí.
KR — Me parece muy interesante esa mención a la posibilidad de que la literatura asuma su tenor libidinal a través del discurso de la intimidad. De hecho, me parece que tiene mucho que ver con una posible lectura de La mitad del arte casi como una novela de iniciación(es) de varios tipos, que me recuerda, por ejemplo, el tono de ciertos libros de Kundera, donde el vértigo de las aventuras del personaje se va mezclando con sus preocupaciones (filosóficas, pero también cotidianas) y el erotismo, antes de ser endulzado, aparece relacionado con cierta idea de dolor —justamente el título de unos de tus primeros poemas. Curiosamente, en tu caso, ese personaje que atraviesa todo el libro no es un “yo” ni un “él” (o “ella”) sino un “tú” que acaba reflejando, al mismo tiempo, al autor y al lector…
MS – Sí, creo que el deseo tiene que ver con la profundización de la relación que tengo conmigo mismo, relación que podría ser entendida como una aventura de autodefinición. La “tentativa de autodefinición indirecta” que Octavio Paz atribuía a su actividad como intelectual hispanoamericano también podría ser aplicada a la situación del poeta cuando escribe un poema. Escribir poesía es siempre “una iniciación” a sí mismo, un deseo de iniciaciones, una negociación con las máscaras, con las heteronimias. Por otro lado, siendo un desplazamiento impuesto por el deseo, la autodefinición no deja de estar vinculada al dolor, al abandono, a una especie de luto. Hay muchas muertes en mis poemas (de personas y de cosas amadas, incluso, no necesariamente nombradas como tales), pero también negaciones, hundimientos, distanciamientos, silencios. Deseando, amando, comenzamos a volvernos extraños, otros, para nosotros mismos. Y, en ese proceso de extrañamiento y de separación —desde la posición de quien escribe o de quien lee— la segunda persona es un lugar del lenguaje que podría reunirnos. El pronombre de la segunda persona es una de las palabras más “eróticas”, por así decirlo, en un grado que depende de sus acepciones, modalidades, registros (prefiero decir “você”, en portugués, ya que en el habla de mi región lingüística es la forma más usada de segunda persona, aunque “você” no tenga larga tradición poética, en portugués brasilero, al contrario del “tú”).
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KR — Hablando de Octavio Paz, ¿cómo evaluarías la relación poética entre Brasil y los países hispanohablantes?
MS – Hay diferencias muy claras en la relación que Brasil tiene con España y con el resto de América Latina. España, en el imaginario brasileño, entra en el paradigma de país colonizador, del cual heredamos nuestros nombres (como en mi caso) y antiguas historias de familia. Brasil es el único país de América Latina que habla portugués, lo que le confiere una situación relativamente aislada desde el punto de vista lingüístico y cultural. Si ese aislamiento se coloca de modo más dramático en relación a los países latinoamericanos es porque tenemos conciencia de que compartimos (o de que podríamos compartir) un destino común. En un pasado no muy distante, ese destino era pensado en términos político-intelectuales; hoy en día, en términos económicos. Infelizmente (pero eso también puede tener un lado positivo), la cultura viene siempre a remolque del resto. Sin ser prioridad de las políticas de Estado, y mucho menos de las políticas de mercado, la cultura acaba viviendo de la aventura de los encuentros, de las amistades, de las admiraciones, del trabajo de los lectores, de los traductores, ya sean “especialistas” profesionales o sean “amateurs”, “viajeros”, fomentadores de esos diálogos. Es verdad que el aislamiento del que hablo era más sensible hace algunas décadas que ahora. Los intercambios entre Brasil y Argentina, por ejemplo, en términos de edición, son hoy mucho más amplios y muchos más rápidos que hace 30 años. Pero la ignorancia mutua parece ser una regla global, cuya atenuación es el desafío y la tarea de cada generación.
KR — Ahora que mencionas esa cuestión de los imaginarios nacionales: me parece que Brasil está intentando sacudirse cierta imagen estereotipada que ha funcionado como pasaporte cultural para circular —especialmente en Europa— y buscando divulgar una producción artística contemporánea apartada de esos clichés. Digo esto pensando justamente en programas como el de la Fundação Biblioteca Nacional de apoyo a la traducción de escritores brasileños. ¿Cómo ves todo este tema?
marcos siscar3MS – Lo que sucede ahora es ciertamente un resultado de la política de diversidad cultural practicada por los programas de gobierno de la “era Lula”, en Brasil, al cual se suma la evidencia de que una cultura viva no sobrevive sólo de sus tótems o de sus best-sellers. Pero es difícil prever el efecto de eso en la relación entre diferentes “imaginarios”. En términos generales, como dije antes, tengo la nítida sensación de que la ignorancia es la regla. El estereotipo es un campo común, una ignorancia mutua que regula las relaciones con el extranjero, ya sea Brasil en Europa o Europa en Brasil. La visión que Brasil tiene de los países europeos es tan pobre y estereotipada como cualquier otra. Por eso, cualquier iniciativa de sacudir los clichés y las ideas preconcebidas, sin caer en generalidades “globalizantes”, es siempre bienvenida, en ambos sentidos. Lo que sucedió en la reciente feria de libro de Frankfurt es significativo: para los alemanes, al mismo tiempo en que fue una manera de tomar contacto con realidades desconocidas, ajenas al cliché, fue también un momento de extrañamiento por el tono, por el abordaje, por el modo de relación que los escritores brasileños tienen con su propio país, con su identidad. O sea, incluso en el campo del esclarecimiento, los extrañamientos se multiplican. No creo que eso sea un problema. Forma parte del juego. Pero es siempre bueno recordar que los malos entendidos se multiplican, porque la cuestión fundamental es otra: la del interés que tenemos en aquello que es extraño, o particular, aquello que se nos escapa, en última instancia. Caetano Veloso decía que “de cerca, nadie es normal.” Es necesario mirar de cerca, para después aprender a distanciarse.
KR — Para finalizar, y volviendo a tu trabajo, ¿podrías contar cómo es tu proceso de escritura poética? Si corriges, poco o mucho, si tienes hábitos fijos, si crees en la inspiración, etc. Y cerrando: ¿hay algún poema de La mitad del arte que recuerdes cómo fue escrito?
MS — No escribo en lugares exóticos, horarios extremos ni estados de delirio. Son experiencias óptimas, pero no necesariamente experiencias de escritura de poesía. Hubo una época en que tenía mis cuadernos, pero ya hace más de dos décadas que escribo en el ordenador. Comienzo anotando ideas, esbozando textos, a veces más o menos resueltos. Cada vez que vuelvo al trabajo, voy releyendo todo, o varias de esas cosas, tomando decisiones, reescribiendo, “peinando” los textos en la dirección a la que apuntan, o a contrapelo. Con el tiempo, los esbozos van ganando una terminación propia y creando diálogos unos con los otros. Es la manera que he encontrado para poner en contacto mi interés por la circunstancia, que genera cada uno de esos fragmentos, y mi interés por el “libro”. No encaro el libro como una estructura hueca en la cual insertar poemas, sino como un proceso que me ofrece el sentido de lo que estoy escribiendo. Hay cuestiones que son generadas por el diálogo entre los textos, por las repeticiones o por las omisiones que esa relectura ayuda a percibir. (Por ejemplo, hubo un momento en que pensaba mucho en el tema del “retorno”, y me di cuenta que era necesario también tomar en cuenta el deseo de “partida”; después, llegué a la conclusión de que si retornar es también partir, partir es también “abandonar”. El desplazamiento de esas imágenes movía muchas cosas en mi memoria afectiva y daba nuevo énfasis a cosas que parecían secundarias.) Pensar de esa manera me ayuda a entender lo que está en juego en mi escritura y me estimula a imaginar consecuencias de eso. Por otro lado, me atraen mucho ciertas frases martilladas, casi vacías, recogidas de la cotidianeidad, así como aproximaciones arriesgadas, relaciones que intuyo, pero que no quedan demasiado claras para mí. En un poema determinado, “dios” y “hospital” aparecen juntos, por razones que me importan mucho, pero que no sé resolver o explicar. La aproximación, claro, tiene relación con acontecimientos dolorosos de mi vida privada, que no vienen al caso. Pero, poéticamente, el aspecto enigmático de la imagen, posible gracias al simple procedimiento de la imagen, basta para que el poema continúe atrayéndome, que continúe escribiéndolo a pesar de que ya ha sido publicado.-
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REVERSIBILIDAD DE BESOS
voy a viajar necesito un beso
me dices de un modo abierto
rehén de la experiencia sí no
es poco eso de querer dar sin
abrir la boca eso de querer caer
de boca seca en el café cortado
tu carne blanca tu estómago
débil recitando sin pensar
una ocasional filosofía eso de tener
sin querer de dejarme sin
pedir al bote de un zigoto rancio
al borde de un autobús que parte nosotros
somos hermanos ambos mudos dame
voy a viajar necesito un beso
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DIABLO TRISTE
el diablo tiene una mirada triste donde viven
pesados devaneos hermanos de todas las cosas
mi hermano manos maltrechas de planchar
una eternidad de palabras piernas flacas
cruz de su sed irreflexiva los hombros curvos
sobre el pulmón el gesto hoguera del deseo
luces opacas en el pelo las venas secas
como fuentes donde el amor no entra más
aunque suplique no se extrae amor
no entra aire no sale no se extraen más sus ayes
y sobre el cuerpo prometido a cal y arcilla
se inmoviliza finalmente una alegría transitiva
dios es su hospital

Kriller71 Ediciones

El blog

http://blogkriller71ediciones.wordpress.com/2013/11/26/marcos-siscar-multiplicar-las-encrucijadas/
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